por Aline
Scarso, do Brasil de Fato
O documentarista Silvio Tendler fala sobre seu filme/denúncia contra os
rumos do modelo adotado na agricultura brasileira.
Silvio Tendler é um especialista em documentar a história brasileira. Já o
fez a partir de João Goulart, Juscelino Kubitschek, Carlos Mariguela, Milton
Santos, Glauber Rocha e outros nomes importantes. Em seu último documentário,
Silvio não define nenhum personagem em particular, mas dá o alerta para uma
grave questão que atualmente afeta a vida e a saúde dos brasileiros: o
envenenamento a partir dos alimentos.
Em O veneno está na mesa, lançado em julho, no Rio de Janeiro, o
documentarista mostra que o Brasil está envenenando diariamente sua população a
partir do uso abusivo de agrotóxicos nos alimentos. Em um ranking para
se envergonhar, o brasileiro é o que mais consome agrotóxico em todo o mundo,
sendo 5,2 litros a cada ano por habitante. As consequências, como mostra o
documetário, são desastrosas.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Silvio Tendler diz que o
problema está no modelo de desenvolvimento brasileiro. E seu filme, que também é
um produto da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, capitaneada
por uma dezena de movimentos sociais, nos leva a uma reflexão sobre os rumos
desse modelo. Confira.
Brasil de Fato – Você que é um especialista em registrar a história
do Brasil, por que resolveu documentar o impacto dos agrotóxicos sobre a
agricultura e não um outro tema nacional?
Silvio Tendler – Porque a partir de agora estou querendo
discutir o futuro e não mais o passado. Eu tenho todo o respeito pelo passado,
adoro os filmes que fiz, adoro minha obra. Aliás, meus filmes não são voltados
para o passado, são voltados para uma reflexão que ajuda a construir o presente
e, de uma certa forma, o futuro. Mas estou muito preocupado. Na verdade esse
filme nasceu de uma conversa minha com (o jornalista e escritor) Eduardo
Galeano, em Montevidéu (no Uruguai), há uns dois anos, em que discutíamos o
mundo, o futuro, a vida. E o Galeano estava muito preocupado porque o Brasil é o
país que mais consumia agrotóxico no mundo. O mundo está sendo completamente
intoxicado por uma indústria absolutamente desnecessária e gananciosa, cujo
único objetivo realmente é ganhar dinheiro. Quer dizer, não tem nenhum sentido
para a humanidade que justifique isso que se está fazendo com os seres humanos e
a própria terra. A partir daí resolvi trabalhar essa questão. Conversei com o
João Pedro Stédile (coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra), e ele disse que estavam preocupados com isso também. Por
coincidência, surgiu a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos, movida por
muitas entidades, todas absolutamente muito respeitadas e respeitáveis. Fizemos
a parceria e o filme ficou pronto. É um filme que vai ter desdobramentos, porque
eu agora quero trabalhar essas questões.
Então seus próximos documentários deverão tratar desse
tema?
Para você ter uma ideia, no contrato inicial desse documentário consta que
ele seria feito em 26 minutos, mas é muita coisa para falar. Então ficou em 50
(minutos). E as pessoas quando viram o filme, ao invés de me dizerem “está muito
longo”, disseram “está curto, você tem que falar mais”. Quer dizer, tem que
discutir outras questões, e aí eu me entusiasmei com essa ideia e estou querendo
discutir temas conexos à destruição do planeta por conta de um modelo de
desenvolvimento perverso que está sendo adotado. Uma questão para ser discutida
de forma urgente, que é conexa a esse filme, é o agronegócio. É o modelo de
desenvolvimento brasileiro. Quer dizer, porque colocar os trabalhadores para
fora da terra deles para que vivam de forma absolutamente marginal, provocando o
inchaço das cidades e a perda de qualidade de vida para todo mundo, já que no
espaço onde moravam cinco, vão morar 15? Por que se plantou no Brasil esse
modelo que expulsa as pessoas da terra para concentrar a propriedade rural em
poucas mãos, esse modelo de desenvolvimento, todo ele mecanizado,
industrializado, desempregando mão de obra, para que algumas pessoas tenham um
lucro absurdo? E tudo está vinculado à exploração predatória da terra. Por que
nós temos que desenvolver o mundo, a terra, o Brasil em função do lucro e não
dos direitos do homem e da natureza? Essas são as questões que quero
discutir.
Você também mostrou que, até mesmo os trabalhadores que não foram
expulsos do campo, estão morrendo por aplicarem agrotóxicos nas plantações. O
impacto na saúde desses agricultores é muito grande…
É mais grave que isso. Na verdade, o cara é obrigado a usar o agrotóxico. Se
ele não usar o agrotóxico, ele não recebe o crédito do banco. O banco não
financia a agricultura sem agrotóxico. Inclusive, tem um camponês que fala isso
no filme, o Adonai. Ele conta que no dia em que o inspetor do banco vai à
plantação verificar se ele comprou os produtos, se você não tiver as notas da
semente transgênica, do herbicida, etc., você é obrigado a devolver o dinheiro.
Então não é verdade que se dá ao camponês agricultor o direito de dizer “não
quero plantar transgênico”, “não quero trabalhar com herbicidas”, “quero
trabalhar com agricultura orgânica, natural”. Porque para o banco, a garantia de
que a safra vai vingar não é o trabalho do camponês e a sua relação com a terra,
são os produtos químicos que são usados para afastar as pestes, afastar pragas.
Esse modelo está completamente errado. O camponês não tem nenhum tipo de crédito
alternativo, que dê a ele o direito de fazer um outro tipo de agricultura. E aí
você deixa as pessoas morrendo como empregadas do agronegócio, como tem o
Vanderlei, que é mostrado no filme. Depois de três anos fazendo a tal da mistura
dos agrotóxicos, morreu de uma hepatopatia grave. Tem outra senhora, de 32 anos,
que está ficando totalmente paralítica por conta do trabalho dela com agrotóxico
na lavoura do fumo.
A impressão que dá é que os brasileiros estão se envenenando sem
saber. Você acha que o filme pode contribuir para colocar o assunto em
discussão?
Eu acho que a discussão é exatamente essa, a discussão é política. Eu, de uma
certa maneira, despolitizei propositadamente o documentário. Eu não queria fazer
um discurso em defesa da reforma agrária ou contra o agronegócio para não
politizar a questão, para não parecer que, na verdade, a gente não quer comer
bem, a gente quer dividir a terra. E são duas coisas que, apesar de conexas, eu
não quis abordar. Eu não quis, digamos assustar a classe média. Eu só estou
mostrando os malefícios que o agrotóxico provoca na vida da gente para que a
classe média se convença de que tem que lutar contra os agrotóxicos, que é uma
luta que não é individual, é uma luta coletiva e política. Tem muita gente que
parte do princípio “ah, então já sei, perto da minha casa tem uma feirinha
orgânica e eu vou me virar e comer lá”, porque são pessoas que têm maior poder
aquisitivo e poderiam comprar. Mas a questão não é essa. A questão é política,
porque o agrotóxico está infiltrado no nosso cotidiano, entendeu? Queira você ou
não, o agrotóxico chega à sua mesa através do pão, da pizza, do macarrão. O
trigo é um trigo transgênico e chega a ser tratado com até oito cargas de
pulverizador por ano. Você vai na pizzaria comer uma pizza deliciosa e aquilo
ali tem transgênico. O que você está comendo na sua mesa é veneno. Isso
independe de você. Hoje nada escapa. Então, ou você vai ser um monge recluso,
plantando sua hortinha e sua terrinha, ou você é uma pessoa que vai ficar
exposta a isso e será obrigada a consumir.
Como você avalia o governo Dilma a partir dessa política de isenção
fiscal para o uso de agrotóxico no campo brasileiro?
Deixa eu te falar: o governo Dilma está começando agora, não tem nem um ano,
então não dá para responsabilizá-la por essa política. Na verdade esse filme vai
servir de alerta para ela também. Muitas das coisas que são ditas no filme, eles
(o governo) não têm consciência. Esse filme não é para se vingar de ninguém. É
para alertar. Quer dizer, na verdade você mora em Brasília, você está longe do
mundo, e alguém diz para você “ah, isso é frescura da esquerda, esse problema
não existe”, e os relatórios que colocam na sua mesa omitem as pessoas que estão
morrendo por lidar diretamente com agrotóxico. Vão todas (as mortes) para as
vírgulas das estatísticas, entendeu? Acho que está na hora de mostrar que muitas
vidas não seriam sacrificadas se a gente partisse para um modelo de agricultura
mais humano, mais baseado nos insumos naturais, no manejo da terra, ao invés de
intoxicar com veneno os rios, os lagos, os açudes, as pessoas, as crianças que
vivem em volta, entendeu? Eu acho que seria ótimo se esse filme chegasse nas
mãos da presidenta e ela pudesse tomar consciência desse modelo que nós estamos
vivendo e, a partir daí, começasse a mudar as políticas.
No documentário você optou por não falar com as empresas produtoras
de agrotóxicos. Essa ideia ficou para um outro documentário?
É porque eu não quis fazer um filme que abrisse uma discussão técnica. Se as
empresas reclamarem muito e pedirem para falar, eu ouço. Eu já recebi alguns
pedidos e deixei as portas abertas. No Ceará, eu filmei um cara que trabalha com
gado leiteiro que estava morrendo contaminado por causa de uma empresa vizinha.
Eu filmei, a empresa vizinha reclamou e eu deixei a porta aberta, dizendo “tudo
bem, então vamos trabalhar em breve isso num outro filme”. Se as empresas que
manipulam e produzem agrotóxico me chamarem para conversar, eu vou. E vou me
basear cientificamente na questão porque eles também são craques em enrolar.
Querem provar que você está comendo veneno e tudo bem (risos). E eu preciso de
subsídios para dizer que não, que aquele veneno não é necessário para a minha
vida. Nesse primeiro momento, eu quis botar a discussão na mesa. Algumas pessoas
já começaram a me assustar, “você vai tomar processo”, mas eu estou na vida para
viver. Se o cara quiser me processar por um documentário no qual eu falei a
verdade, ele processa pois tem o direito. Agora, eu tenho direito como cineasta,
de dizer o que eu penso.
Esse filme será lançado somente no Rio de Janeiro ou em outras
capitais também?
Eu estou convidado também para ir para Pernambuco em setembro, mas o filme
pode acontecer independente de mim. Esse filme está saindo com o selinho de
“copie e distribua”. Ele não será vendido. A gente vai fazer algumas cópias e
distribuir dentro do sentido de multiplicação, no qual as pessoas recebem as
cópias, fazem novas e as distribuem. O ideal é que cada entidade, e são mais de
20 bancando a Campanha, consiga distribuir pelo menos mil unidades. De cara você
tem 20 mil cópias para serem distribuídas. E depois nós temos os estudantes, os
movimentos sociais e sindicais, os professores. Vai ser uma discussão no Brasil.
Temos que levar esse documentário para Brasília, para o Congresso, para a
presidenta da República, para o ministro da Agricultura, para o Ibama. Todo
mundo tem que ver esse filme.
A expectativa é boa então?
Sim. Eu sou um otimista. Sempre fui.
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