O RETORNO
Os hierarcas de Alexandria, e foram muitos, em nome de Alá ,
obedecendo a um impulso cego e à vaidade do Imperador, decidiram reproduzir a
experiência de um deus estrangeiro, cujo relato lhes ocorrera num lance do
acaso. Em um dos milhares de pergaminhos, cuidadosamente preservados na
Biblioteca, encontraram um exemplar do Livro do Gênesis no qual se relata a
origem de certo Adão, moldado na úmida argila e que habitava um jardim
magnífico. Fazia parte de um grande livro que seria traduzido por 70 sábios por
ordem do Imperador. Estava, porém, escrito em uma língua bárbara.
Dedicados à tarefa, seja por mera vaidade intelectual ou
por devoção ao Imperador (Alá o guarde), recriaram o homem Adão que se
assemelhava a um Golem, só que livre e independente.
Ao longo dos meses, o homem Adão reproduzia, no sopro que
recebera, as vicissitudes humanas. Conheceu a dor, a fome e a solidão, depois
de ter como companheira uma mulher que ele também conheceu, mas no sentido
erótico, sob a cumplicidade sombria de uma árvore incomum.
Ao longo dos anos, os hierarcas acompanharam a longa
jornada de Adão que se multiplicou em milhões de outros. E surgiram as cidades,
os crimes, as bodas de sangue. E vieram os dilúvios, os sacrifícios, os
arrependimentos e o perdão.
Até que um de seus descendentes, movido pela profundidade
da misericórdia, predicou a necessidade de restaurar outra humanidade, para o
escândalo de muitos. Foi crucificado, morto e sepultado; ressuscitou no
terceiro dia e no mesmo corpo. (assim narram os bárbaros infiéis).
Os heresiarcas de Alexandria que só conheciam o tempo
linear conviveram com um delicado mistério: o homem foi capaz de reconhecer o
fim e o começo, como as duas faces da mesma moeda. Conheceram o segredo do
Eterno Retorno, pois um deles retornou dos campos da morte para permanecer
entre os outros homens, predicando a ressurreição.
Os heresiarcas de Alexandria agora suspeitam que são
imortais e que sua humanidade é circular e para sempre. E que não pode haver um
destino trágico, porque o tempo se repete, infinitamente. Porque não existe
passado ou futuro, tudo é agora.
Resta, porém, uma aporia que foi inscrita nos pergaminhos
do labirinto de Creta: então, o ressuscitado morrerá outra vez, para ser, de
novo, ressuscitado? Ou será o único?
Carlos Sepúlveda
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Lucas Ferreira.