
* Sylvia Debossan Moretzsohn
É possível afirmar a luta pela democratização da comunicação
quando se discrimina quem pode e quem não pode trabalhar numa cobertura?
Representantes da Mídia Ninja contestaram, com toda a razão, a atitude do
governo do estado do Rio de Janeiro, que há cerca de um mês os barrou na
entrada do Palácio Guanabara, onde se realizava uma coletiva, porque não lhes
reconhecia o status de “imprensa”. No entanto, o grupo que desde a semana
passada ocupa a Câmara dos Vereadores do Rio, em protesto contra o desvirtuamento
na composição da CPI dos Ônibus, age precisamente da mesma forma, ao impedir o
acesso de jornalistas da chamada imprensa tradicional, autorizando apenas a
entrada dos ninjas. A justificativa é de que essa imprensa distorce as
informações, manipula os fatos e tem um passado que a condena: “apoiou a
ditadura”.
Não se trata, agora, da hostilização às vezes extremamente violenta contra
jornalistas, especialmente de redes de TV, durante as manifestações de massa
que ocorreram em junho e julho. Nesses casos, sempre seria possível apontar uma
indignação difusa, supostamente espontânea, de pessoas comuns revoltadas contra
a atuação da grande mídia, embora seja sempre importante lembrar que palavras
de ordem não surgem do nada: alguém “puxa” e o coro corresponde. Agora é
diferente, porque há um pequeno grupo organizado que delibera quem pode ou não
trabalhar, quando e como.
Qual liberdade?
Quando se contesta essa atitude, há quem responda que o que se deseja é a mídia
livre, e que de nada adianta a presença de jornalistas se o seu trabalho será
deturpado na hora da edição.
Estamos, portanto, de volta aos tempos da censura prévia, com a particularidade
de que nem sequer se permite a apuração dos fatos, para que não sejam
divulgados como não se deve.
Curiosamente, no famoso Roda Viva de duas semanas
atrás, o líder do coletivo Fora do Eixo contestava a
imparcialidade como valor para o jornalismo e defendia, em contrapartida, a
“multiparcialidade”.
Seria interessante indagar como produzir essa multiplicidade de pontos de
vista, se tantos são impedidos de ver.
Talvez, porém, essa “multiparcialidade” diga respeito apenas aos que são “mídia
livre”: por consequência, os demais, os que “apoiaram a ditadura”, devem ser
silenciados.
Faz sentido: Saint-Just, um dos ícones da política do terror que se seguiu à
Revolução Francesa, dizia que não poderia haver liberdade para os inimigos da
liberdade. Pouco importam as tragédias que a História acumula: sempre
sobrevivem os partidários dos comitês de salvação pública e de suas
guilhotinas.
Todos ou ninguém
Como já pude comentar neste Observatório, o pressuposto que automaticamente
condena tudo o que vem da grande imprensa parece expressão de aguda consciência
política, quando não passa de uma brutal ignorância. Mas, em tempos turbulentos
como os que estamos vivendo, radicalizar faz parte: quanto mais, melhor.
Em várias entrevistas, o líder do Mídia Ninja repetiu que discordava da
hostilização aos jornalistas, que não agiria assim, mas que entendia por que os
outros agiam. Na prática, portanto, não contestava esse comportamento:
“entender”, nesse caso, acaba sendo sinônimo de “aceitar”, por mais que o
discurso afirme outra coisa.
Diante do que ocorre na Câmara de Vereadores do Rio, se discordassem de fato
dessa atitude, os ninjas poderiam simplesmente rejeitar o privilégio. Bastaria
dizer: ou todos cobrem, ou ninguém. Seria uma forma objetiva e pedagógica de
contestar a discriminação e de demonstrar solidariedade a quem exerce a
profissão de jornalista, algo que militantes de outras épocas sabiam valorizar
muito bem.
Os empresários que comandam as grandes corporações de comunicação são
absolutamente refratários à democratização dos meios e sempre acusaram de
“censura” qualquer tentativa de regulação nesse campo. Quem impede a imprensa
de trabalhar provavelmente imagina estar agindo de maneira mais eficaz na
contestação a esse poder. Opta pela ação direta, despreza a via institucional.
Mas o exercício da censura em nome da liberdade, além de um absurdo lógico,
significa apenas a inversão de sinais e o afastamento de qualquer hipótese de
projeto democrático.
Naturalmente, todos falam em nome do povo. Mas, nesse horizonte, o que se
vislumbra tem a forma oblíqua de uma lâmina pronta para decepar cabeças.
* Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de
Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia
(Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e
cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007).
Publicado no Observatório da Imprensa em 20/08/2013
Comentários